O Vendedor de Passados de José Eduardo Agualusa
Esta resenha propõe-se a analisar criticamente o romance O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa, destacando os principais elementos narrativos, simbólicos e contextuais que compõem a obra, a fim de contribuir para uma reflexão mais aprofundada sobre a literatura angolana contemporânea.
Literatura
11, Julho de 2025

O romance O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa, publicado em 2004 pela editora Dom Quixote, insere-se no contexto da literatura angolana contemporânea, tendo como pano de fundo o período pós-independência de Angola. A narrativa propõe-se a problematizar temas como identidade, memória, trauma histórico, desigualdades sociais e manipulação das origens, numa Angola marcada pelos efeitos prolongados da guerra e pela crise de valores que se seguiu ao fim do regime colonial.
A obra, dividida em trinta e dois capítulos, acompanha a vida de Félix Ventura, um homem albino que vive em Luanda e se dedica à criação e venda de passados fictícios, porém ilustres, a uma clientela pertencente às elites políticas, económicas e militares da sociedade angolana.
O ofício do protagonista não é meramente excêntrico, mas simbólico: revela a ânsia de reinvenção identitária que atravessa muitos sectores da sociedade angolana, particularmente os que ascenderam ao poder após a independência, mas careciam de raízes sociais ou familiares prestigiadas. O seu trabalho, embora fictício, responde a uma necessidade real, a de legitimação de status, num país onde o prestígio histórico passou a ser moeda valiosa.
Félix, ao fornecer genealogias inventadas, oferece aos seus clientes uma ligação ilusória com um passado nobre, numa sociedade onde a aparência de respeitabilidade é muitas vezes mais valorizada do que a substância moral.
O enredo adensa-se com a chegada de um misterioso estrangeiro, que procura não apenas um passado, mas uma nova identidade angolana completa. Félix aceita o desafio e cria José Buchmann, fotógrafo profissional, natural do sul de Angola. No entanto, à medida que o cliente se integra nessa nova identidade, passa a confundir-se com ela, numa tentativa inconsciente de fugir ao seu passado traumático.
A obsessão de Buchmann com a vida inventada leva-o a procurar detalhes sobre os seus supostos antepassados e a mergulhar nas memórias reconstruídas, como se estas fossem verdadeiras, uma imersão que culmina num reencontro inesperado com figuras reais da sua vida anterior, nomeadamente Edmundo Barata dos Reis, um antigo agente da Segurança do Estado, responsável por crimes atrozes contra a sua família, incluindo o assassinato da esposa e a tortura da filha recém-nascida.
A casa de Félix Ventura torna-se o palco onde memórias traumáticas são reencenadas. Nela, vivem e se cruzam personagens que transportam consigo não apenas o peso da guerra civil, mas também os escombros da construção de uma nova nação. O narrador da obra é Eulálio, uma osga que partilha o espaço doméstico de Félix e que, segundo a narrativa, já foi humano. Através da sua perspectiva, o leitor é convidado a observar os acontecimentos com uma sensibilidade que oscila entre o poético e o filosófico. Eulálio representa uma espécie de consciência crítica da narrativa, funcionando como intermediário entre o real e o simbólico, entre o mundo visível e o mundo da memória.
Entre as personagens centrais destaca-se Ângela Lúcia, mulher por quem Félix se apaixona. Fotógrafa, ela procura nas suas imagens não os traços da destruição deixada pela guerra, mas os fragmentos de esperança e reconstrução. É através dessa sensibilidade que ela representa o papel regenerador do feminino na obra. Não obstante ter sido vítima de violência durante a infância, foi queimada com cigarros por Edmundo e viu a mãe ser assassinada, ela recusa-se a ser prisioneira do passado, optando por viver e projectar o presente com optimismo.
A sua recusa em ouvir histórias sangrentas é sintomática da vontade de romper com o ciclo de dor, como se pode ler na sua frase emblemática: “Basta! Não quero que as suas memórias deixem esta casa suja de sangue.” Esta atitude contrasta com a posição de José Buchmann, cujo sofrimento o impede de seguir em frente até ao confronto final.
O momento culminante da narrativa ocorre quando Buchmann, ao reconhecer Edmundo, tenta matá-lo. No entanto, é Ângela Lúcia quem concretiza a vingança, matando o homem que destruiu a sua família. A revelação de que ela é, afinal, a filha de Buchmann, torna o gesto ainda mais denso em significado, encerrando simbolicamente o ciclo de violência com a acção da vítima tornada agente da justiça. Félix, cúmplice silencioso desta resolução, enterra o corpo no seu quintal, reforçando a ideia de que certos episódios da história permanecem ocultos, embora continuem a influenciar a vida colectiva.
A cidade de Luanda surge na obra como personagem activa: um espaço simultaneamente destruído e em reconstrução, em que a ruína física se associa à fragmentação identitária dos seus habitantes.
A paisagem urbana reflecte o estado psicológico das personagens, assinalando a ferida deixada por décadas de guerra e opressão. Através da ficção, Agualusa elabora uma crítica subtil mas contundente ao sistema político angolano, sugerindo que a transição da colónia para a independência não significou necessariamente justiça ou liberdade para todos. Os fantasmas do colonialismo foram, em muitos casos, substituídos por outras formas de dominação, como evidenciam os abusos cometidos por agentes do Estado angolano.
A figura de Félix Ventura, com a sua condição de albino e o seu isolamento social, pode ser lida como alegoria de um país que tenta reinventar-se, mas carrega marcas profundas de exclusão e abandono. Félix é rejeitado pelas mulheres e vive uma vida de solidão, imerso na tarefa de apagar ou reescrever o passado dos outros, sem ter, no entanto, uma história afectiva plena para si próprio. Apenas através da relação com Ângela Lúcia vislumbra a possibilidade de redenção e de ligação humana genuína.
O romance de Agualusa propõe, assim, uma reflexão sobre a fragilidade da memória, o peso da herança histórica e o papel da narrativa na construção das identidades pessoais e colectivas. A personagem de Buchmann evidencia a tensão entre a necessidade de esquecer para seguir em frente e o risco de apagar factos essenciais da história. Nas palavras do narrador: “José Buchmann não é José Buchmann, e sim um estrangeiro a imitar José Buchmann. Porém, se fechar os olhos para o passado, se o vir agora, como se nunca o tivesse visto antes, não há como não acreditar nele – aquele homem foi José Buchmann a vida inteira.”
Por fim, O Vendedor de Passados afirma-se como uma obra literária de elevado valor simbólico e estético, articulando elementos do realismo mágico com a crítica social e política.
Ao inscrever-se no espaço ficcional de uma Angola em busca de sentido, a obra reflecte um esforço de resgate da dignidade através da palavra escrita. A literatura, neste caso, é apresentada como meio de reconstrução de um país ferido, mas ainda capaz de reinventar-se. A escolha de um narrador não humano, a presença do fantástico e a força poética da linguagem revelam uma escrita que ultrapassa a denúncia, apostando na arte como via de transformação e resistência.
Referências
SANTOS, Sónia Regina dos – A Reinvenção da História, da memória e da identidade em O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa. Teias. Editoria UERJ, Rio de Janeiro, janeiro/junho 2008, 17, pp. 78–89 [consultado em 2018-11-24]. Disponível online: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/24029/16998 ISSN: 1982-0305 (versão eletrónica)
AGUALUSA, José Eduardo – O Vendedor de Passados. Lisboa: Dom Quixote. 2004. ISBN 972-20-2667-4
SENETA, Cristóvão Felisberto – Entre Memória e Esquecimento: Construção Identitária em Mia Couto (Jerusalém) e José Eduardo Agualusa (O Vendedor de Passados). Porto: Dissertação de Mestrado apresentada à instituição Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2013
AZEVEDO, José – Culturas. A construção das identidades. Africana Studia. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2000, 3, pp. 165–180 [consultado em 2018-11-23]. Disponível online: https://catalogo.up.pt/exlibris/aleph/a23_1/apache_media/P8DRKPMNCPT4HCEFGJP9V8EAMXVVGQ.pdf ISSN: 0874-2375
STACUL, Juan Filipe – Um homem em busca de memória, um povo em busca de identidade. As relações entre literatura e história no romance O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa. Revista Letras. 2010, 82, pp. 261–276 [consultado em 2018-11-23]. Disponível online: https://revistas.ufpr.br/letras/article/view/25088/16785 ISSN: 2236-0999 (versão eletrónica)
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